
Tânia Neves: Retratos de Liberdade e Histórias do Mundo
Conheci a Tânia Neves em Hanói, no Vietname, e desde então nunca mais perdemos contacto. Com o tempo, acabámos por trabalhar juntas no fascinante mundo das viagens. A Tânia, com raízes nas montanhas mágicas, é como um doce envolto em impulsividade, arrojo e coragem. Fascinada pelo remoto, encontrou na fotografia uma poderosa forma de quebrar barreiras e explorar um mundo de culturas diversas. Atravessa locais inóspitos e desafiadores, sempre em busca de algo único, mas é nas montanhas que o seu coração realmente bate mais forte.
A Tânia Neves é uma verdadeira força da natureza, uma mulher cuja energia e visão não conhecem limites. Ela inspira não apenas pela sua imensa coragem e resiliência, mas também pela forma genuína com que se entrega ao seu trabalho e ao mundo. Neste tributo, celebro a fotógrafa, a viajante, a empreendedora e, acima de tudo, a extraordinária mulher que ela é, bem como o impacto profundo que tem deixado na vida de todos os que têm o privilégio de cruzar o seu caminho.
Hoje, a voz que se faz ouvir é de Tânia Neves!
A tua carreira como fotógrafa e produtora de cinema leva-te a lugares remotos e culturalmente diversos. Como é que a fotografia se tornou o teu meio de expressão e o que é que ela te permite capturar de uma maneira única?
O facto de eu própria vir de um local extremamente remoto e de tradições / culturas muito acentuadas, com uma comunidade quase extinta e fraturada pela ditadura, creio que fez crescer dentro de mim uma necessidade natural de contar as histórias do povo e documentar coisas no seu espaço e no seu tempo.
Estudei na António Arroio, uma escola onde a liberdade criativa é celebrada, e isso permitiu-me explorar a Fotografia como meio criativo e de comunicação. Depois ainda tive uma licenciatura artística "de luxo" numa das cidades mais criativas do mundo - Bristol, onde tive a sorte de ter mentores como o Tricky. Ainda na UWE (University of the West of England - Bristol), tive uma tutora de origem sueca, uma mulher que nunca tirou a carta de condução mas tinha brevet de piloto e um pequeno avião no aeroporto de Bristol, de onde ocasionalmente voava para visitar a família na Suécia. Todas estas coisas ajudaram a moldar a mulher, fotógrafa e contadora de histórias em que me tornei.
A fotografia é apenas a ferramenta "honesta" que escolhi para guardar pedacinhos do espaço e tempos em que vivemos, imprescindível em todas as viagens e histórias. As minhas fotografias são sempre "sooc" (straight out of camera), brutalmente honestas e cruas, tal como as histórias que documentam.

Viajaste para alguns dos lugares mais restritos do mundo, como a Coreia do Norte e Xinjiang. Como é que esses lugares impactaram a tua abordagem à fotografia e ao relato de histórias por meio da imagem?
As minhas viagens a locais controversos costumam ser altamente criticadas, mas eu tenho o privilégio de vir de um dos lugares mais livres do mundo e faço uso dessa liberdade. Nada na História é eterno, e acho importante documentarmos estes pedaços do tempo.
É sempre bom relembrar que o facto de sermos curiosos e de documentarmos certos momentos não quer dizer que concordemos com eles. Espero sempre através da fotografia estender essa visão a todos os que não podem - ou não querem - conhecer esses lugares, o que faz com que esses momentos carreguem um pouco mais o "peso da responsabilidade" porque sei que apelam à curiosidade (e julgamento) de muitas pessoas.
Numa era onde toda a gente anda com telemóveis e selfies, é muito interessante erguer uma camera num local onde se assume que a fotografia livre é restrita.
"Spirit Animal", o teu projeto sobre as alterações climáticas nas tribos nómadas da Mongólia, é um exemplo de um trabalho muito pessoal e poderoso. Como surgiu a ideia deste projeto e que emoções ou revelações trouxe à tua prática fotográfica?
O Spirit Animal foi um projecto que nasceu de uma vontade genuína de documentar um lado menos explorado das histórias das tribos na Mongólia, e através disso nos dar alguma matéria para pensarmos no impacto da nossa pegada nas comunidades remotas. O projecto já passou por muitas fases e moldes, levou-me aos maiores festivais de cinema da Europa e trouxe-me uma aprendizagem enorme, tendo acabado por vender a uma das maiores produtoras mundiais com quem está agora muito bem entregue.
O documentário marcou a minha transição da Sony para a Fujifilm, que tem sido nos últimos anos uma das maiores mais-valias da minha prática fotográfica.
O teu trabalho é um exemplo de como a fotografia pode ser uma poderosa ferramenta para dar voz a pessoas marginalizadas. Como garantes que o teu trabalho não só respeita, mas também honra as pessoas e os locais que fotografas?
Há uma relação muito bonita e íntima entre o fotógrafo e o fotografado - por uns breves momentos somos privilegiados com uma profunda vulnerabilidade de quem fotografamos, e é importante (para mim) que esse momento seja consentido, honesto e de uma conexão muito genuína. É muito poderoso termos esta ferramenta que permite levar essa conexão a muitas mais pessoas.
Há muitas alturas que sinto que parte da minha alma e da minha energia também ficam nas histórias que fotografo, aconteceu nos incêndios de Tondela e no xamã da Mongólia. É muito mais que empatia, é como uma absorção energética que se transpõe para as imagens, e fica ali guardada para sempre, podendo ser infinitamente revisitada por quem as vê.
Eu diria que há dois factores a ter em consideração: primeiro, a humildade de sabermos que aquela não é a nossa história, e segundo a responsabilidade que é documentarmos uma história que não é a nossa.
Há uma relação muito bonita e íntima entre o fotógrafo e o fotografado - por uns breves momentos somos privilegiados com uma profunda vulnerabilidade de quem fotografamos, e é importante (para mim) que esse momento seja consentido, honesto e de uma conexão muito genuína.
A tua formação em Fotografia e Antropologia pela Universiteit van Amsterdam claramente molda o teu olhar. Como é que essas duas disciplinas se cruzam no teu trabalho e influenciam a forma como abordas as culturas que retratas?
Na verdade são dois cursos distintos, licenciei-me em Fotografia na UWE - Bristol, Reino Unido, e depois fiz a pós-graduação em Antropologia na UvA - Amesterdão, Países Baixos.
A pós-graduação em Antropologia que fiz na UvA foi sobre a preservação cultural de micro-culturas em grandes cidades, muito especificamente o meu caso de estudo eram famílias muçulmanas numa cidade onde se vendia sexo nas janelas, mas nada tinha a ver com fotografia. Mas acho que são dois cursos que se complementam muito bem entre sim, quando o nosso foco é o trabalho documental e de storytelling. Sem dúvida que isso me ajudou a procurar uma visão mais empática sobre todos os casos, procurar pontos de identidade que mesmo não sendo alinhados com os nossos façam sentido no seu contexto.
Ao longo dos teus anos a viajar, qual foi a experiência ou lugar que mais te marcou e que mudou a forma como vês o mundo e a tua própria arte?
Inquestionavelmente a Mongólia! E mesmo já contando imensos carimbos de entrada na Mongólia, continuo a ser surpreendida por aquele "tanto de nada". É de longe o sítio mais fotogénico que conheço, e parece uma viagem no tempo, a um tempo que não é contemporâneo. São longas viagens ao passado, a um país pouco explorado e estragado pela humanidade.
Por estar num processo de desenvolvimento actual e muito acelerado, sinto uma urgência enorme em documentar tudo o que há lá, com a certeza que as gerações vindouras não irão conhecer nada do que experienciamos agora.

Na tua visão, como é que as viagens podem contribuir para uma maior compreensão entre diferentes culturas? O que achas que podemos aprender uns com os outros ao atravessar fronteiras e explorar novas realidades?
Há coisas que se conhecem melhor, fazendo, e viajar pode ser uma delas - mas não é qualquer tipo de viagem. Há cada vez mais inteligência artificial nas viagens, apps que fazem os itinerários, reviews no google, agências de viagem com experiências em "bolha", a globalização e a alienação são dois problemas contemporâneos gigantes que fazem com que haja cada vez menos empatia entre culturas. Muita gente viaja mas espera encontrar no destino o mesmo que deixou em casa, quer seja o conforto do colchão, água quente em chuveiros pressurizados, comida como a que temos em casa, enfim, a lista é infinita.
Acredito que só se encontra essa compreensão entre culturas quando, por um lado, o viajante parte de coração aberto, disponível para o desconforto e para a surpresa, e por outro lado, quando no destino o espera uma experiência autêntica, de gentes e culturas locais, e não uma réplica do que ele deixou em casa.
Vejo muito nos que viajam comigo para países mais precários, como a Mongólia, a aprenderem a valorizar mais a água, por exemplo. Na nossa cultura, abrimos a torneira e a água aparece por magia, potável e limpa, quente ou fria. Criam-se animais em matadouros, que são sacrificados para comer apenas uma porção dos seus jovens corpos, numa indústria insustentável, mas também percebemos o quão insustentável é ter uma alimentação vegan num país sem agricultura. Enfim, as possibilidades são infinitas
Eu tenho algum cuidado em fazer manuais para os viajantes para dar uma introdução à cultura que vamos visitar, e procurar que estejam abertos a novas experiências. É muito gratificante quando vemos que houve alguma mudança interior. Sinto sinceramente que há experiências pessoais que podem tornar o mundo um sítio melhor, e viajar desta forma é sem dúvida uma delas.
O que te motivou a criar a Unusual Voyages e como é que a tua visão de empreendedorismo foi moldada pela tua experiência como fotógrafa e líder de viagens?
Acima de tudo, a Unusual Voyages nasceu para colmatar o que eu referi no ponto anterior. Há várias agências de viagens no mercado, e o público tem muito por onde escolher, mas eu estava com dificuldade em encontrar uma agência que estivesse alinhada com os mesmos valores que eu, então decidi preencher esse espaço. Não é uma visão propriamente empreendedora, pois não nos regemos pelo princípio da escalabilidade do negócio, mas sim na qualidade das nossas viagens, sempre fiéis aos nossos valores.

É um projecto ainda muito pequenino, com uma visão que assenta quase totalmente no respeito e valorização das comunidades locais, mas que felizmente tem sido muito bem recebido. Somos uma startup incubada na Ericeira Business Factory, que acolhe projectos de sustentabilidade, turismo e mar, e fomos também um dos projectos finalistas da edição 2024 do maior programa de empreendedorismo feminino nacional, o Bora Mulheres. Em Maio, com menos de um ano no activo, ganhámos o prémio do concurso de ideias na categoria de Startups, o que nos levou à Web Summit. Isto são tudo factos muito bonitos, mas sinceramente não há nada como a experiência no terreno, com as pessoas e as suas histórias, para nos ajudar a definir o nosso rumo no que toca a criar novas experiências de viagens.
Com a Unusual Voyages, procuras oferecer um turismo ético e sustentável. O que significa para ti combinar o prazer de viajar com o compromisso com a preservação cultural e ambiental?
Sem preservação cultural ou ambiental, e sem educação nesse sentido também, o mundo como o conhecemos irá desaparecer em breve. É imprescindível cuidarmos do nosso planeta, nutrir e honrar os seus povos - gentes e animais - e celebrar a diferença cultural. A globalização descaracteriza e destrói o nosso planeta. Para mim, viajar é uma forma de celebrar o que de bom há no mundo, honrando-o.
Sem preservação cultural ou ambiental, e sem educação nesse sentido também, o mundo como o conhecemos irá desaparecer em breve. É imprescindível cuidarmos do nosso planeta, nutrir e honrar os seus povos - gentes e animais - e celebrar a diferença cultural.
Como líder de viagens, como integras a fotografia na experiência que proporcionas aos viajantes? Qual é o impacto que a tua prática fotográfica tem na forma como os viajantes percebem e interagem com os destinos?
Não misturo as coisas quando estou só a liderar um grupo no terreno, pois as nossas viagens não são apenas para interessados em fotografia. Mas dou aulas de fotografia documental em Lisboa, onde ensino precisamente sobre o impacto da fotografia nas viagens, e a importância da relação entre o fotógrafo e o fotografado. Uma dessas formações acaba precisamente com uma viagem, e é muito interessante ver como os alunos vêem esta nova forma de olhar o mundo nas suas experiências.

Ser uma mulher empreendedora e viajar para lugares remotos certamente exige muita coragem e resiliência. Quais foram os maiores desafios que enfrentaste ao longo da tua jornada e como é que esses desafios moldaram o teu carácter e o teu negócio?
Eu sou mulher de género mas a minha personalidade é de "casmurra", acho que nunca tive nenhum tipo de desafio para o qual não tivesse uma resolução simples. Sinceramente, o maior desafio que encontro é a opinião redutora de algumas pessoas no meu próprio país, onde durante muitos anos deixaram implícita a ideia de que eu haveria de querer ser mãe ou que não poderia fazer isto para sempre.
Sempre tive um espírito selvagem, aos 7 ou 8 anos já tinha fugido de casa para ir viver para a "floresta", quase todos os dias fugia da escola na primária... Venho de uma família que passou as suas dificuldades. Não há nenhuma mulher das minhas antepassadas que tenham gozado de liberdade e força de vontade. Desde muito nova que sempre disse que queria honrá-las gozando da minha liberdade, conquistada por elas.
A parte empreendedora vem dessa liberdade também - já tive todo o tipo de trabalhos, mas sempre fui empreendedora, no sentido que sempre fui atrás do que para mim faz sentido. E para mim não faz sentido uma "carreira" ou uma reforma. Quero viver mais de 100 anos e não me quero reformar nunca. Sinto que ainda vou apenas no começo.
Como vês o papel da fotografia no contexto das viagens e do turismo? De que maneira ela pode contribuir para a compreensão intercultural e para um turismo mais responsável e consciente?
Viajar não é só ir aos sítios, muitas pessoas não o podem fazer fisicamente e fazem-no através dos livros ou das exposições fotográficas. A fotografia documental pode multiplicar o sentimento de sustentabilidade, responsabilidade e ética a todos os que também não vão lá.
Por outro lado, também é uma forma de dar corpo e voz às comunidades locais. Sem a fotografia documental muitas vezes essas histórias não seriam ouvidas ou endereçadas.
O que esperas alcançar com a Unusual Voyages no futuro? Quais são os próximos passos para o teu negócio e de que forma a fotografia continuará a ser uma parte fundamental da missão de abrir fronteiras e transformar a forma como as pessoas veem o mundo?
Para já vamos continuar a trabalhar no modelo que temos trabalhado: pequenos grupos em grandes viagens, workshops e formação de fotografia documental em viagem, e continuamos incubados na Ericeira Business Factory pelo menos ainda durante 2025. Manter e promover os nossos valores para a sustentabilidade, enriquecimento social, preservação cultural, equidade e justiça.
Temos projectos que acompanhamos na Mongólia, Marrocos e Etiópia, e temos algumas novidades que a seu tempo hão-de chegar cá fora. Não nos queremos multiplicar em destinos ou líderes, o nosso objectivo é mantermo-nos como um projecto pequeno pois só assim podemos ter um impacto mais humanizado.
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