
Ana Fidalgo e Liliana Marques: Da Visão Individual à Transformação Coletiva
Desde 2021, a Ana Fidalgo tem sido a minha psicoterapeuta. Ainda que já não faça sessões regulares, será sempre a minha referência, aquela a quem recorrerei quando a vida apertar ou sentir que preciso do seu apoio para me ajudar a trabalhar algo em mim e na minha vida. No percurso de terapia com a Ana, a Liliana Marques entrou na estrutura terapêutica, guiando-me em sessões de EMDR (Eye Movement Desensitization and Reprocessing) — e acreditem, é quase milagroso!
Da Ana, ouvi e senti aquilo que tantas vezes desejei ter escutado de amigos e familiares. Algumas das suas palavras jamais esquecerei, assim como a sua disponibilidade incondicional, incluindo aquelas mensagens de resposta em modo SOS às 22h da noite. Da Liliana, recebi a segurança e o cuidado necessários para embarcar numa terapia que mexe com as profundezas da nossa mente, em que nós não controlamos nada, é o nosso cérebro que assume o comando.
Cresci muito com ambas. Parte da pessoa que sou hoje deve-se ao trabalho delas comigo. Pela forma como ouviram, apoiaram, questionaram, validaram, mas, acima de tudo, pela empatia e pela compaixão que sempre demonstraram. Enquanto escrevo isto, emociono-me, porque olho para trás e, meu Deus… o quanto cresci, o quanto mudei! E sim, estou profundamente orgulhosa do meu percurso, mas também estou imensamente orgulhosa das pessoas que me acompanharam e contribuíram para tudo isto, nomeadamente a Ana e a Liliana.
Se foi fácil? Não. Mas foi maravilhoso!
Tal como me viram crescer, eu quero vê-las crescer também, porque as minhas psicólogas são, além disso, empreendedoras. Dos seus sonhos nasceu O Teu Lugar, um projeto que já caminha sozinho e não pára de crescer. Esta, é a minha homenagem a estas duas grandes mulheres, doces, sonhadoras e visionárias, que já deixaram uma marca profunda na minha vida.
Hoje, as vozes que se ouvem são de Ana Fidalgo e Liliana Marques!
NOTA: Esta entrevista está dividida em três partes: uma com Ana Fidalgo, outra com Liliana Marques e, por fim, uma com ambas sobre O Teu Lugar.
O que te motivou, inicialmente, a escolher Psicologia como área de formação e, mais especificamente, a explorar a vertente da sexualidade e terapia de casal? Houve alguma experiência ou influência que marcou essa escolha?
Ana Fidalgo: Costumo dizer que não fui eu que, inicialmente, escolhi a psicologia, foi ela que me escolheu! Convencida de que iria para o campo das artes, fui recebendo feedback, entre conversas de amigos, que esta seria a minha vocação - que ser empática, analítica e boa ouvinte fariam de mim uma excelente psicóloga. Não estava muito convencida disto na altura e ainda pensei que fosse enveredar pela psicologia forense… mas foi mesmo a clínica (em particular a psicodinâmica) que me apaixonou! A partir daí a minha curiosidade escorregava sempre para os temas desta privilegiada profissão que não permite apenas enriquecer a vida de quem nos procura, mas também a nossa, num crescimento e expansão de experiência sem fim.
As vertentes da terapia de casal e da sexologia estiveram sempre de mansinho no baú da minha mente… A primeira, em parte, pelo conflito (e a resolução do mesmo) ter deixado uma marca fundamental na minha história. A segunda, porque a intimidade e o sexo sempre foram alvo de uma grande curiosidade para mim. A sexualidade é uma parte essencial da experiência humana, do nosso bem-estar e da forma como nos relacionamos connosco mesmos e com os outros, indo muito mais além do sexo. É um território complexo e repleto de emoções e está profundamente entrelaçado com a nossa cultura, noção de moralidade e pelas experiências que moldam quem somos. Reflete um equilíbrio muito delicado entre a vulnerabilidade e a descoberta, sendo, muitas vezes, um espelho da relação que temos com a nossa própria essência. Como diz Esther Perel “Não é uma coisa que se faz, é um sítio onde se vai.”
A sexualidade é uma parte essencial da experiência humana, do nosso bem-estar e da forma como nos relacionamos connosco mesmos e com os outros, indo muito mais além do sexo. É um território complexo e repleto de emoções e está profundamente entrelaçado com a nossa cultura, noção de moralidade e pelas experiências que moldam quem somos.
Na tua prática, que questões ou desafios mais frequentes observas nas áreas de sexualidade e relacionamento? O que achas que isso revela sobre a forma como a nossa sociedade encara estas questões?
Ana Fidalgo: Os desafios que mais me surgem em terapia estão muito ligados à nossa grande habilidade para fazer “acordos internos” sem comunicar com o outro aquilo que sentimos, bem como também a forma como estamos habituados a ver as experiências de forma polarizada, “bom ou mau, preto ou branco - se penso isto, então sou aquilo.” Também surgem muitas questões ligadas à forma de encarar os papéis de género e expectativas sociais, que leva a uma grande sobrecarga e saturação. Muitas vezes aquilo que acontece, é que os casais apenas procuram apoio psicológico quando já estão sem energia criativa para resolver as suas questões, quase em modo “desafio final”.
Acredito que isto reflete imenso uma ressonância histórica negativa sobre como lidar com as nossas emoções. Preconceitos sobre ser-se fraco, demasiado emocional, demasiado sensível, demovem as pessoas, primeiro, de explorarem o que realmente sentem e depois de falarem sobre isso, mesmo que seja com a pessoa com quem acordam todos os dias. Nessa relação de auto censura, as pessoas desligam-se cada vez mais de si e do outro…e isto também coloca um tom muito particular nas expectativas e papéis de género, pois é um grande desafio para muitas pessoas transformarem a sua realidade para uma que é tão diferente daquela que aprenderam e com que viveram muitos anos. De tal forma que muitas vezes se negam, sem ter consciência, de sequer provar os frutos maravilhosos que podem decorrer dessa mudança.
Que estigmas ou barreiras sentes que ainda existem na nossa sociedade quando se fala de sexualidade, tanto a nível individual como nos relacionamentos?
Ana Fidalgo: A sexualidade ainda é muito marcada por silêncios, tabus e normas que limitam a nossa capacidade de vivê-la de forma plena e autêntica... A nível individual, muitas pessoas ainda sentem vergonha, culpa ou medo de serem julgadas, especialmente quando a sua sexualidade foge ao que é normalizado pela sociedade. Nos relacionamentos, há barreiras de comunicação, expectativas desiguais e, muitas vezes, falta de espaço para a vulnerabilidade. Ainda vivemos num contexto onde as necessidades emocionais e sexuais são frequentemente reprimidas ou mal compreendidas, o que perpetua as frustrações e desconexões. Isto cria um ciclo vicioso, onde quem se sente reprimido se conhece menos e, quando eu não me conheço e entendo, também não consigo conectar-me verdadeiramente com o outro.

Na tua opinião, quais são os maiores passos que ainda precisamos dar como sociedade para construir uma abordagem mais aberta e saudável em relação à sexualidade? Há aspetos em que vês uma mudança positiva?
Ana Fidalgo: Acredito que precisamos de continuar a criar espaços de diálogo, onde possamos falar sobre sexualidade de forma aberta e sem julgamentos. Acredito que em especial a educação sexual/afetiva (seja qual for a sua designação) desempenha um papel fundamental, ajudando a entender que a sexualidade não é apenas sobre o físico, mas também sobre identidade, autoconhecimento, respeito, intimidade e consentimento. E acredito que o nosso governo pode ter um papel importante não só nisto, mas também na gestão das desigualdades que ainda existem.
Precisamos, também, de desmistificar o prazer, falar sobre diversidade e reconhecer que a sexualidade de cada pessoa é única - e se isto não representar nenhum comportamento anti-social ou violação de direitos humanos, merece ser vivido de forma livre.
Quanto às mudanças positivas, vejo um crescimento exponencial de iniciativas que promovem conversas honestas sobre saúde sexual e emocional, e uma maior integração de diferentes identidades e orientações. Acho muito importante que continuem a fazê-lo, várias pessoas, de várias faixas etárias, com diferentes vozes e estilos, pois há sempre uns que ressoam mais com umas pessoas do que com outras. De forma informativa, reflexiva e não prescritiva ou impositiva. É um progresso lento, mas significativo, que nos lembra que em muitos sentidos estamos a caminhar na direção certa!
Como psicóloga e mulher, que mensagem gostarias de transmitir a outras mulheres que, tal como tu, procuram equilibrar a autoaceitação com o crescimento pessoal?
Ana Fidalgo: Em primeiro lugar reconhecer que isto da autoaceitação e crescimento pessoal é difícil como o raio! Dói, requer esforço e não promete o “felizes para sempre” que muitas vezes nos é vendido. Por isso, diria - trata-te com a mesma ternura e paciência que ofereces às pessoas que mais amas. Reconhece que muitas vezes as condições não são as mais facilitadoras, e que o crescimento pessoal não é uma linha reta, nem é perfeito. O equilíbrio entre aceitar quem és e trabalhar para quem queres ser é sobre ouvir o que o teu interior necessita.
Permite-te ser imperfeita e celebra cada pequeno passo, porque o crescimento verdadeiro acontece quando aprendemos a acolher todas as nossas partes — as fortes, as vulneráveis, as sombras, as que brilham e as que ainda estão a ser trabalhadas - toda a vida! E por favor, saibam que sentir é a melhor forma de saber. Há muita coisa que racionalmente sabemos, mas não conseguimos sentir como verdade. E geralmente isso significa que algo nos marcou tão profundamente que ainda desperta os mesmos alertas que foram necessários no passado. Não estão sozinhas, estamos convosco!
O equilíbrio entre aceitar quem és e trabalhar para quem queres ser é sobre ouvir o que o teu interior necessita. Permite-te ser imperfeita e celebra cada pequeno passo, porque o crescimento verdadeiro acontece quando aprendemos a acolher todas as nossas partes.
A tua visão para criar “um lugar que nos permita ser” é inspiradora. De que forma procuras, no teu trabalho diário, ajudar as pessoas a encontrar ou construir esse lugar seguro para si mesmas e nos seus relacionamentos?
Ana Fidalgo: O lugar onde nos permitimos ser começa com o acolhimento — de quem somos, com tudo o que trazemos: dores, sonhos, inseguranças e esperanças. No meu trabalho, procuro criar um espaço seguro, onde as pessoas possam explorar as suas emoções sem medo de julgamento e com a certeza de que deste lado está alguém com um olhar curioso e carinhoso sobre tudo aquilo que trazem. Escuto com atenção, ajudo a desembrulhar “novelos interiores” e, tento guiar cada pessoa na construção de relações mais genuínas, consigo mesmas e com os outros.
Acredito que, ao oferecer acolhimento e respeito, ajudamos cada um a descobrir que pode criar esse lugar dentro de si — um espaço onde é possível ser autêntico, vulnerável e, ainda assim, forte.
O teu percurso em Psicologia abrange várias áreas, desde a educação emocional infantil até ao trabalho com a terceira idade e a gestão de recursos humanos. Como influenciaram estas experiências a tua abordagem terapêutica atual e a visão integrativa que aplicas?
Liliana Marques: Sinto que, na verdade, foi a vida que escolheu esses caminhos por mim. Apesar de sempre ter tido a prática clínica na linha orientadora dos meus sonhos e objetivos, costumo dizer que não acredito que hajam caminhos alternativos; apenas caminhos que precisamos de percorrer, que representam oportunidades de crescimento e aprendizagem, não só como profissionais, mas também enquanto seres humanos. Trabalhar com a pessoa nas suas diferentes fases da vida e nos diferentes contextos permitiu-me ter uma visão mais ampla e holística do que somos e sentimos em cada um deles e que é transversal à experiência humana, mas também uma visão única e individualizada relativamente ao impacto que cada desafio pode ter considerando as diferentes dimensões que eles afetam, quer na idade, quer no contexto. Educar para as emoções (através do reconhecimento e regulação emocional) na infância é, na minha perspetiva, uma intervenção de primeira linha e um dos melhores investimentos para o futuro que queremos para as gerações vindouras. Por outro lado, trabalhar o envelhecimento significa relembrar que o lugar de onde viemos é também aquele para onde vamos. A forma como cuidamos “dos nossos velhos” merece atenção urgente e diz muito sobre nós enquanto sociedade. Apesar de nunca ter sido uma área de interesse na minha formação, trabalhar com a terceira idade foi, sem dúvida nenhuma, uma experiência absolutamente transformadora para mim, muito além do que poderia imaginar.
Por último, gerir recursos humanos fez-me compreender melhor um dos assuntos que mais oiço em consulta atualmente; não podemos esquecer-nos que passamos cerca de um terço do nosso dia (ou mais) no nosso local de trabalho, e que a forma como vivenciamos a experiência laboral impacta, também, várias dimensões de vida (quer a nível pessoal, quer a nível relacional). Apesar de, nessa altura, estar longe de imaginar que um dia teria de gerir pessoas na minha própria clínica, tudo o que aprendi nessa experiência tem sido imprescindível também para este desafio profissional a que me propus.
Na verdade, cada pessoa é uma soma de tudo aquilo que vivencia ao longo das várias fases da vida, das relações que constrói e dos contextos em que se desenvolve, por isso, considero que cada uma destas experiências foi fundamental para aquilo que sou hoje como Psicóloga e como pessoa, e que também se reflete na abordagem integrativa pela qual oriento a minha intervenção clínica.
Na verdade, cada pessoa é uma soma de tudo aquilo que vivencia ao longo das várias fases da vida, das relações que constrói e dos contextos em que se desenvolve, por isso, considero que cada uma destas experiências foi fundamental para aquilo que sou hoje como Psicóloga e como pessoa, e que também se reflete na abordagem integrativa pela qual oriento a minha intervenção clínica.
Qual foi o impacto da tua formação em psicopatologia e psicoterapias dinâmicas na forma como percebes e abordas a saúde mental? Como é que esta formação ajuda a moldar o trabalho que realizas com cada pessoa que procuras ajudar?
Liliana Marques: Apesar de ter uma abordagem integrativa que tento, ao máximo, adaptar consoante as necessidades expressas por cada paciente, a minha linha orientadora de base é sempre a formação em psicopatologia e psicoterapias dinâmicas.
Acredito que a saúde mental de cada um de nós e a forma como nos desenvolvemos e relacionamos com o outro são um reflexo de tudo aquilo que vivenciamos desde o momento em que somos gerados. Os estudos mais recentes referem que cerca de noventa por cento da nossa psique e da forma como ela funciona é material inconsciente, o que significa que noventa por cento da nossa vida acontece fora da nossa consciência, isto é, por mecanismos inconscientes. Saber que apenas dez por cento está ao alcance do nosso nível de consciência, revela o que está na base daquilo que orienta a minha prática clínica: para compreendermos o nosso presente, precisamos de aceder à origem de cada parte daquilo que somos.
A abordagem psicodinâmica é, na minha perspetiva, aquela que melhor dá resposta a esta questão que afeta as várias dimensões da nossa saúde mental. Com a relação terapêutica como motor basilar da intervenção, a história de cada um é desconstruída e o seu sentido é ressignificado, num lugar seguro e de acolhimento daquilo que a pessoa é, o que vai permitir que (re)conheça os seus padrões, compreenda a sua origem e, consequentemente, consiga operar mudanças significativas na sua vida.
Na sociedade do imediatismo e da correria dos dias é cada vez mais urgente olharmos de dentro para fora; para nós e para o outro. Olhar menos para o ecrã e mais para o que está à nossa volta. Perceber que não existem soluções rápidas, imediatas e que sirvam a todos: o processo de autoconhecimento é profundo e acontece no tempo de cada um.
Costumo brincar e dizer que, se tivesse soluções rápidas e universais ou as estratégias que tantas vezes me pedem nas primeiras consultas, estaria na mesma a dar consultas, porque é o que me apaixona, mas a partir das Maldivas, porque certamente que já teria enriquecido a vender a fórmula mágica da felicidade.
Tudo o que é duradouro leva tempo a ser construído: esse mesmo tempo que nos dizem que não temos a perder, mas que podemos ganhar.

Na tua opinião, de que forma a saúde mental ainda é encarada e abordada na nossa sociedade, e quais consideras serem os passos mais importantes para promover uma verdadeira mudança de consciências?
Liliana Marques: Apesar de começarmos a ver e sentir algumas mudanças na forma como a nossa sociedade aborda os temas relacionados com a saúde mental, principalmente desde a pandemia – que, por ter “posto à prova” tantas dimensões da nossa saúde, tornou urgente o (re)pensar a saúde mental como uma parte integrante e imprescindível da nossa saúde como um todo –, ainda estamos longe daquilo que seria ideal.
Primeiramente, percebermos que saúde mental não é, inequivocamente, o oposto de doença mental. Para isso, é imperativo haver informação suficientemente esclarecedora e disponível para todos. A necessidade de olharmos para dentro e compreendermos quem somos é absolutamente fulcral para qualquer ser humano que queira viver uma vida com significado, e investirmos na nossa saúde mental é essencial para que isso aconteça; com ou sem doença mental associada.
Não obstante, pararmos de “ignorar o elefante na sala” e perceber que a doença mental deve ser tratada de forma tão automatizada como fazemos com a doença física: temos síntomas e procuramos ajuda médica. O processo de “olhar para dentro” que referi anteriormente tem uma dimensão ainda maior quando falamos de doença mental: saber reconhecer os sinais e sintomas e procurar ajuda de um profissional especializado é fundamental. Na mesma linha, sermos capazes de olhar para o outro na mesma medida pode ser igualmente determinante: por vezes, há coisas que não somos capazes de reconhecer com facilidade dentro nós, e que são mais facilmente reconhecidas por quem está à nossa volta.
Como vês o papel da relação terapêutica na construção de novas significações e na cura dos pacientes? Podes partilhar um exemplo de como a história e o sentir de um paciente podem transformar-se nesse contexto?
Liliana Marques: A relação terapêutica é um lugar de amor, acolhimento e transformação, que permite que o paciente e o terapeuta pensem em conjunto e desconstruam significados. É um lugar de verdade onde cada um encontra a sua sem que a do outro se imponha. Quanto mais próximo o paciente estiver da sua verdade, também o estará das suas respostas e, consequentemente, do seu processo de cura.
Sentir-se visto e amado por aquilo que é na sua essência é, por si só, um processo transformador para o paciente. Só isso vai permitir a que aceda ao seu sentir de forma transparente e conectada com a sua verdade, compreendendo e aceitando a sua história como parte integrante daquilo que é. Ao longo de toda a vida, é em relação que nos construímos, que adoecemos do ponto de vista psicológico, mas também é em relação que nos curamos. Na relação terapêutica as histórias e o sentir adquirem novos significados que, ao serem expressos, verbalizados e verdadeiramente escutados, elaboram-se e integram-se numa nova relação que vai encontrando espaço para existir dentro de si e do outro; esse é o caminho para a transformação, e a forma como sentimos esta relação e o que dela recebemos pode verdadeiramente mudar a nossa vida.
Sentir-se visto e amado por aquilo que é na sua essência é, por si só, um processo transformador para o paciente. Só isso vai permitir a que aceda ao seu sentir de forma transparente e conectada com a sua verdade, compreendendo e aceitando a sua história como parte integrante daquilo que é.
Como vês a terapia EMDR no contexto das opções de tratamento para a saúde mental, especialmente em comparação com outras abordagens terapêuticas? O que consideras ser único nesta prática?
Liliana Marques: Na mesma linha de pensamento que referi anteriormente, eu acredito mesmo que a saúde mental de cada um de nós e a forma como nos desenvolvemos e relacionamos com o outro são um reflexo de tudo aquilo que vivenciamos desde o momento em que somos gerados, mas apenas dez por cento dessa informação está disponível de forma mais ou menos evidente no nosso nível de consciência. Os restantes noventa por cento representam material inconsciente que, muitas vezes, bloqueia os processos de intervenção psicoterapêutica; muitas vezes, falamos de traumas que interferem na forma como nos relacionamos connosco e com os outros.
Foi nesse âmbito que percebi que a psicoterapia EMDR poderia ser uma excelente resposta. Ao longo da minha prática clínica fui percebendo a necessidade de encontrar alguma forma de intervir nestas situações, e na verdade, após a formação e a prática da psicoterapia EMDR, percebi o quão transversal e adaptável ela pode ser na vida da pessoa e em várias situações que vão além do trauma.
O que considero diferenciador (e absolutamente transformador) na psicoterapia EMDR é o facto de, apesar de ser um processo orientado por um terapeuta devidamente especializado e certificado, é o paciente quem comanda o processo, e o cérebro dele que realiza “o processo de cura”. A intervenção ocorre, portanto, no estado consciente do paciente e, no entanto, intervém sobretudo em processos inconscientes. Quando um trauma acontece, ele fica bloqueado no nosso sistema nervoso, associado à imagem original que o causou, às emoções e pensamentos negativos (sobretudo, sobre si mesmo), o que condiciona aquilo que sentimos e vivemos no presente. Através da dessensibilização e reprocessamento de experiências emocionalmente traumáticas, com recurso à estimulação bilateral do cérebro e enfoque nos diversos componentes das memórias, é possível que o paciente reprocesse a experiência de forma mais adaptativa.
A EMDR ainda é uma abordagem relativamente pouco conhecida em Portugal. Como achas que se poderia aumentar a consciencialização sobre a mesma e a sua eficácia, e quais os principais desafios que vês para isso?
Liliana Marques: Exatamente da mesma forma que considero que poderíamos transformar os paradigmas associados a todas as questões/intervenções associadas à saúde mental: com uma comunicação clara, descomplicada e acessível a todos.
Em consultório, por exemplo, há muitos pacientes que desconhecem a psicoterapia EMDR ou que a confundem com a Hipnose. São abordagens e intervenções bastante diferentes. No mesmo seguimento, têm medo de “perder o controlo” ou aceder a conteúdos demasiado pesados sobre si mesmos e/ou sobre a sua história.

É importante explicar exatamente do que se trata e de que forma acontece todo o processo de intervenção, e por isso é que é tão importante que a pessoa se certifique que está perante um terapeuta devidamente especializado e acreditado pelas entidades que regulam esta prática (a AssociaçãoEMDR Portugal tem um diretório de todos os terapeutas aptos à sua aplicação e intervenção, que está acessível e pode ser consultado por qualquer pessoa).
Nós somos o resultado de uma soma de tudo aquilo que vivemos, e isso inclui memórias emocionalmente difíceis (desengane-se quem acha que traumas são apenas catástrofes e abusos; os “traumas mais pequenos” são, muitas vezes, tão ou mais impactantes na nossa vida!). Costumo brincar e dizer que a EMDR é uma espécie de magia para quem experimenta: a maioria dos relatos é de uma transformação profunda e, na minha perspetiva, diferenciada em relação a outros tipos de intervenção clínica; não se trata de esquecer o que aconteceu, mas sim de reprocessar essa experiência de uma forma adaptativa, sem o peso da emoção associada à memória no momento em que ocorreu. Neste processo de “ressignificar as memórias traumáticas”, elas tornam-se parte integrante da nossa história, como devem ser, mas deixam de condenar ou definir a forma como vivemos a nossa vida.
Conforme já referi, a necessidade de olharmos para dentro e compreendermos quem somos é absolutamente fulcral para qualquer ser humano que queira viver uma vida com significado. Neste sentido, a psicoterapia EMDR pode ser um caminho importante a percorrer.
Como surgiu a ideia de criarem “O Teu Lugar”? Houve algum momento específico na vossa prática clínica que reforçou a necessidade de um espaço como este?
O Teu Lugar: "O Teu Lugar" começou como um esboço rabiscado num caderno da Ana sobre o que seria trabalhar de acordo com os valores que ela considerava importantes na prática da saúde mental e bem-estar em geral. Num momento em que sentia a necessidade de fazer algo mais pela profissão, achou que poderia difundir estes valores através de um projeto como um podcast. Na verdade, o crescer de algumas experiências negativas - sentimentos de julgamento, negligência e crueldade por parte de profissionais de saúde e diretores clínicos - tanto na própria prática clínica como nas conversas partilhadas com outros colegas, deu o pontapé de saída, ainda que muito a medo, para tornar esta ideia em mais do que um podcast - um projeto. Foi na partilha desta ideia com a Liliana que nasceu O Teu Lugar ! Uma fusão dos pilares da Ana com o espírito empreendedor da Liliana e que neste momento é um organismo vivo e complexo muito maior que a soma das partes. Diríamos até que, mais do que a necessidade de um espaço como este, havia uma urgência, em passar à acção e criar mudança.
Mais do que a necessidade de um espaço como este, havia uma urgência, em passar à acção e criar mudança.
O vosso compromisso com a empatia e a adaptação é evidente. Que mensagem gostariam de transmitir a quem, ao considerar terapia, pode ainda sentir alguma hesitação em dar esse primeiro passo em busca de ajuda?
O Teu Lugar: Gostaríamos de dizer que sentir hesitação é completamente natural. Procurar ajuda implica vulnerabilidade e isso pode ser bastante assustador…Aquilo que é mais difícil de ver nestes momentos é que é, ao mesmo tempo, um acto de coragem e um gesto que vai muito além do autocuidado! Dizemos em tom de brincadeira que pode ter como efeitos secundários sérios de aumento da autoestima, reconhecimento e gestão/regulação dos sentimentos e emoções, melhorias nas relações interpessoais, capacidade de lidar de forma adaptativa com os desafios da vida e com riscos de sentimentos de bem-estar!
Um processo terapêutico não é sobre ser “resolvido”, mas sim sobre encontrar um espaço seguro onde te possas conhecer melhor, explorar o que te inquieta e descobrir novas formas de viver em harmonia contigo mesmo/a. O primeiro passo pode parecer difícil, mas pode ser também o início de uma transformação profunda e genuína. Os bons profissionais vão estar lá para te acolher exatamente como és, sem julgamentos, respeitando o teu tempo e o teu processo.
Um processo terapêutico não é sobre ser “resolvido”, mas sim sobre encontrar um espaço seguro onde te possas conhecer melhor, explorar o que te inquieta e descobrir novas formas de viver em harmonia contigo mesmo/a.
O que sentem que o papel de psicóloga vos trouxe de mais valioso para o mundo do empreendedorismo, especialmente ao liderarem um projeto como “O Teu Lugar”?
O Teu Lugar: O papel de psicóloga ensinou-nos a ouvir com intenção, respeitar a individualidade , valorizar o poder das pequenas mudanças e saber sair da visão “afunilada” para poder ver a imagem completa. No empreendorismo, estas competências permitem-nos criar um espaço que não só oferece serviços, mas que realmente acolhe e procura ajudar as pessoas, dentro e for a da nossa equipa.
A nossa sensibilidade como psicólogas trouxe-nos a capacidade de nos adaptarmos, de liderarmos com um equilíbrio entre empatia e assertividade e de colocarmos as necessidades humanas no centro de cada decisão. Muitas vezes isto significa ter o dobro ou triplo do trabalho que um outro projeto teria, mas, no fim do dia, é o que nos permite orgulhar de todo o esforço e sentir-nos em sintonia connosco.
Quais são os maiores desafios que enfrentam ao conciliar as responsabilidades clínicas com a gestão de um negócio? Existe alguma competência ou prática que consideram essencial para equilibrar estes papeis?
O Teu Lugar: O maior desafio é, sem dúvida, encontrar o equilíbrio entre o cuidado que dedicamos aos nossos clientes, o tempo que é necessário investir na gestão do projeto e da equipa e conciliar tudo isso com o resto da nossa vida pessoal, o que implica sempre que o primeiro é o prioritário, e o último, o que cai com mais facilidade da lista. São dimensões que exigem energia emocional e atenção constante.
Para equilibrar esses papéis, a organização é essencial, mas também a capacidade de delegar, confiar e de estabelecer limites.Tentamos sempre praticar aquilo que promovemos: a autoconsciência e o autocuidado. Sabemos que só conseguimos cuidar bem dos outros se também nos cuidarmos a nós mesmas.
Em que medida ser psicólogas impacta a vossa visão enquanto empreendedoras, especialmente na criação de um espaço que respeita a individualidade, empatia e diversidade?

O Teu Lugar: Ser psicólogas faz com que, como empreendedoras, tenhamos um olhar profundamente humano sobre tudo o que criamos. Este projeto nunca foi apenas sobre serviços; foi sobre criar um lugar que respeite quem entra nele. Esse olhar permite-nos adaptar as nossas abordagens às pessoas que procuram “O Teu Lugar”, e não o contrário.
Como psicólogas, entendemos que cada pessoa é única, e é essa visão que molda a forma como desenhamos as nossas práticas e relações. Sentimos muito esta diferenciação sobretudo no que toca à forma como queremos chegar às pessoas, pois existem códigos éticos e deontológicos que delimitam a forma como podemos publicitar e cuidar das relações com os nossos clientes. Uma comercialização mais agressiva, como é o caso de outras áreas do empreendorismo está logo à partida fora de questão, por exemplo. É muito mais sobre mostrar quem somos e chegar a quem precisa do que “conquistar o público alvo”.
Como é que esta experiência de empreender mudou ou enriqueceu a forma como se veem, tanto a nível pessoal como profissional? Existem aspetos da psicologia e do empreendedorismo que sentem ser particularmente complementares?
O Teu Lugar: Empreender trouxe-nos um sentido ampliado de propósito e resiliência. A nível pessoal, aprendemos a abraçar a vulnerabilidade de crescer em terrenos desconhecidos, com os desafios e conquistas que isso traz... Não esperávamos tão cedo ter a dimensão a que chegámos em todos os sentidos (espaço, equipa, funcionamento)!
A nível profissional, permitiu-nos integrar a psicologia de uma forma mais abrangente, aplicando os nossos valores e aprendizagens na gestão de relações humanas, não só nos clientes, mas também na equipa e na comunidade.
Psicologia e empreendedorismo podem ser complementares e estamos ainda a meio da viagem de descobrir como isso realmente é! É certo que ambos exigem empatia, escuta ativa, capacidade de adaptação e uma visão que vai além do imediato. Ambos envolvem conectar-se com as pessoas e encontrar soluções que fazem sentido para elas.
Quais são os objetivos futuros para “O Teu Lugar”? Há serviços novos ou abordagens inovadoras que gostariam de implementar para continuar a apoiar o bem-estar mental e emocional dos vossos clientes?
O Teu Lugar: O nosso maior objetivo é continuar a crescer como um espaço que acolhe a individualidade e oferece o melhor cuidado possível. Queremos ampliar a nossa rede de parceiros que partilham os mesmos valores que nós e os nossos serviços, integrando práticas complementares, como workshops de autoconhecimento, grupos de apoio ou programas focados em temas específicos, como gestão de emoções, relacionamentos ou autocuidado, tanto ao nível presencial como através de ferramentas digitais que mantenham a qualidade e a proximidade do nosso cuidado.
Também queremos explorar mais formas de tornar a terapia acessível, através de parcerias (anunciaremos a nossa primeira parceria em breve!). O que mais desejamos é continuar comprometidas com a inovação e com a criação de um espaço onde cada pessoa possa sentir que encontrou, de facto, o seu lugar.